domingo, 15 de março de 2009

Lula Nogueira




LULA NOGUEIRA


O contato direto com o real é qualquer coisa que me parece absolutamente essencial, quase misticamente essencial. Em um sentido quase fisiológico, a verdade, até onde podemos enxergá-la, depende de nos mantermos fiéis à realidade, como Nietzsche falava de se manter fiel à terra.

Marguerite Yourcenar

Desde os primeiros exemplares que dela pude ver, a pintura de Lula Nogueira me atraiu por duas qualidades muito marcantes. A primeira delas foi a fidelidade do artista a sua própria história afetiva e, conseqüentemente, à sua gente e à sua província, o que o torna um memorialista pleno de sons e sabores.
A outra de suas características que me chamaram a atenção foi a maneira contida que o artista conduz a sua representação: em nenhum detalhe da cor, das situações ou da tipologia há folclorização gratuita. Seu elenco não aspira ao pitoresco estereotipado, mas se move com a graça viva da autenticidade. Aquilo que, na fisionomia ou na postura de algum personagem, suscita nosso olhar mais cúmplice pertence intricicamente àquele personagem ou àquela situação. E é exatamente esse rigor que o faz, tanto quanto um amoroso memorialista, um cronista implacável.
E implacável aqui não tem nada a ver com a aridez da isenção: ao contrário, dotado de uma ironia que, por ser discreta, não é menos lúdica é que ele se debruça sobre a aparente banalidade do dia-a-dia, sabendo extrair dela os mil e um registros de uma fabulação verdadeiramente mágica. Nela, familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos desdobram-se numa tipologia inconfundível. Esse instinto de encenador ( e mais um apreciável domínio dos meios, marcadamente a cor ) é que lhe permitem encontrar o tom exato desse teatro de parentescos e vizinhanças; de camaradagens e parcerias; meio memória, meio ironia, meio indulgência.
Girando em torno desse eixo afetivo, a ficção pictórica de Lula Nogueira dá-se a ler como amplo painel do homem de sua terra, colhido em sua rotina mais corriqueira. Essa ausência de drama e esse escrupuloso evitamento de sua banalização pelo pitoresco parecem-me atender a dois níveis de auto-exigência.
Primeiramente, no plano representacional, corresponde a um enxugamento da fábula, preservando-a do chavão dos sotaques forçadamente regionais. E por isso ele consegue ser legitimamente um pintor do seu aqui e do seu agora, na medida em que se recusa a oferecer de ambos uma visão convencionalmente tipificadora.
Em seguida, no plano estético, onde há a considerar seu tratamento da figura, que é de um esquematismo voulu, sendo seus melhores momentos aqueles em que se apresenta mais despojada, como que fazer lugar, na contemplação do quadro, para os exercícios e achados do olhar exigente. Por aí ele atinge uma modernidade essencial, próxima da Bad Painting e da Arte Povera.
E justamente porque não procura o pretexto de um drama para vestir seus personagens, ele o encontra nesses gestos e posturas, nessas expressões e nesse olhares ( a respeito destes últimos vem-me à mente ninguém menos que Daumier ) da maneira mais espontânea.
Ou seja, pelo fato de retratá-los em sua circunstância habitual, não buscando efeitos de dramaticidade, tipicidade ou simbologia, o pintor consegue fazer fluir,através dessas figuras, uma estranha tensão de Teatro do Absurdo. Um sartreano absurdo, inerente à condição humana, que talvez um descuidado primeiro olhar não chegue a colher, envolvido que certamente estará pela sedução das soluções plásticas,originais e surpreendentes, de quadro a quadro.
Para além delas, porém, a reclamar toda nossa capacidade de analogia e mimese, pulsa o texto de um tempo e de um lugar, dito por um de seus artistas mais sensíveis.


RUY SAMPAIO










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